Pesquisa do Palavrório

29.10.07

Ambigüidades

Todo dia, no caminho para o trabalho, estou propenso à poesia. Vou de bicicleta, em um ritmo mais calmo que o resto das pessoas, escutando música, cheirando grama molhada de orvalho, passando por caminhos onde há gente caminhando, ainda há pássaros, eventualmente o trem ao lado me faz companhia.

Aprecio os quintais das casas que ainda existem – casas e quintais – e lembro de um tempo mais simples, mais calmo (me lembro de meu vizinho, o Júnior, rapagão alto à beça que pulava a cerca de casa sem usar as mãos, como um corredor de 110 metros com barreiras), em que havia tempo para brincar na rua – era possível brincar na rua.

Aí eu chego ao trabalho, cheio de poesia na cabeça, e ligo o computador com o nobre objetivo de escrever alguma coisa nesse sentido. E nos últimos três meses sou soterrado pela avalanche de trabalho – muitas vezes insensato e sem objetivo. Aí a poesia que havia pela manhã vai se esgotando, vai diminuindo, até ser completamente apagada por números, cifras, tabelas, apresentações e metas empresariais. Uma trabalheira desgraçada para explicar ao Sr. Mercado que a firma crescerá cerca de 25%, e não 28% como havia sido previsto, que o Sr. Mercado não ficará 28% mais rico, mas “apenas” 25%.

Na volta para casa, de novo sobre a bicicleta, a poesia tenta entrar novamente na cabeça. Mas ela está cheia de números, gráficos e tabelas. Um beija-flor cruza o caminho e quase devolve o sorriso. Um cachorrinho que parece sem dono faz xixi bem na roda do carro tunado, e o sorriso aparece envergonhado no canto da boca. Um casal passeia de mãos dadas pela ciclovia, alheio a tudo e concentrados apenas em si mesmos, e dentro de mim o sorriso já está quase pronto.

Aí chego em casa, duas pequenas criaturas vêm correndo para me abraçar e beijar, uma linda mulher vem e me beija, faz um cafuné em meus cabelos, e finalmente o sorriso e a poesia estão de volta.

Nenhum comentário: