Pesquisa do Palavrório

17.1.08

Assincronia

O casal de namorados está parado na esquina se despedindo. Pode não ser um casal de namorados ainda, parecem mais um par que está prestes a se tornar um casal de namorados. Isto porque não estão já se beijando, se abraçando, aquele abraço forte de quem tem a absoluta certeza de que será a última vez em que eles se verão, mas que também traz a absoluta certeza de que eles se verão dali a pouco. Ainda não há esse beijo, esse abraço. Há apenas um encontro de mãos e um cruzamento de olhares. Olhares que revelam desejo, mas que ainda não é concretizado.

Eles se despedem com um beijo de um na bochecha de outro. É daqueles beijos que pára no meio do caminho, entre a boca e a bochecha. Um beijo meio tímido, o último que antecede o verdadeiro beijo. Ele fica no meio do caminho e, sem coragem de rumar ao centro da boca, deixa aquele delicioso gosto nos lábios de "quero mais, venha logo", mas que por alguma razão há uma timidez no ar que não deixa o casal concretizar o desejo de ambos. O beijo fica no meio do caminho, à espera de um novo encontro para chegar ao seu destino final.

Lentamente, os corpos vão se afastando, os dois vão andando de costas, até que os braços completamente esticados já não se alcançam e os dedos finalmente se separam. As mãos bailam no ar até encostarem timidamente ao lado dos quadris, mão esquerda dele, mão direita dela, ficam no ar, sozinhas mas com o calor dos dedos do outro na ponta dos dedos. Lembrança tátil que se junta a todas as outras - abraço, beijo meia boca, cabelos, mão ao redor da cintura, um cafuné - para aumentar o desejo de se ter todo o corpo do outro dentro, fora, ao redor. Não naquele momento, porém, não ainda.

Quando já há uma distância impercorrível entre eles, quando qualquer passo em frente na direção do outro significaria o exagero, ela finalmente se vira e deixa de caminhar para trás. Agora, ela já anda em frente, mas ele ainda anda de costas, esperando um olhar dela. Ela banca a difícil e não se gira. Ele desiste então e se vira para frente. Quando ele se vira à frente, é a vez dela torcer o pescoço e procurar o olhar dele. Triste, ela percebe que ele não está olhando para ela. Ela então se gira novamente e deixa de procurar o seu olhar. Quando faz isso, ele então a procura com os olhos novamente. Vai que ela está se fazendo de difícil? Mas ela não está olhando. Para ele, ela havia desistido pois ele não estava com os olhos prontos para capturá-la. Ele já acha que ela não está tanto a fim dele. Ele torna a caminhar em frente, olhando à frente.

Ela então se gira de novo. Uma última esperança de que eles estejam realmente conectados, que ele está ali, esperando o olhar dela, olhando para ela, querendo-a. Mas ele não está olhando para ela. Para ela, ele desistiu. Ele não era o homem que ela esperava que fosse. Para ela, naquele instante, ele era o homem que queria o beijo ali, agora, naquele instante. Podia até ser, mas aquele beijo podia ser o primeiro de muitos. Mas ele já estava ali, na postura de um homem como todos os outros: quer o beijo, quer o sexo e não quer mais nada além disso. Não, ela não quer mais um homem assim. Ele parecia diferente, ela pensa, mas não é nada além de um homem qualquer. Ela deixa de sonhar, suspira e se vira à frente.

Ele dá uma última olhada. Ela está prestes a sair de seu campo de visão. Se for algo, será agora, ele pensa. Ele até pára de andar. Afinal, ela parecia ser uma mulher diferente, uma mulher com quem valia a pena sonhar ter um tempo juntos, só ele e ela. Casamento, quem sabe, muito cedo para dizer, mas ela tinha aquele algo que chama a atenção além da beleza física. Um brilho nos olhos de alguém que está procurando uma pessoa diferente, uma pessoa legal, alguém que não fosse o lugar comum. E ele, tudo o que ele sempre quis é que alguma mulher reconhecesse as suas virtudes, virtudes que sempre foram consideradas fraquezas por seus amigos: fidelidade, o desprezo à mentira, a busca de calma em vez de farra, a vontade de ficar em um canto sossegado com a pessoa amada. Ela parecia ser esta mulher. Mas ela não se vira. Ele se vira então e continua seu caminho.

Logo, eles somem da vista um do outro. Com o passar dos dias, sumirão também da memória um do outro, até se transformarem em um longo suspiro nos dias melancólicos...

14.1.08

Lugar correto

Escutei de um professor uma frase capital, que norteia-me desde então: “Se você não está feliz em seu trabalho, significa que você não é o talento certo para a empresa”. Li a frase da seguinte maneira: eu tenho talento sim, mas os talentos que tenho não servem naquele lugar, devo procurar outro onde meu talento seja melhor utilizado.

Daí eu pensei que a questão do talento certo pode ser aplicada a praticamente qualquer coisa na vida. Se você está em uma relação que não te satisfaz, você não é o talento certo para a tua parceira. Não quer dizer que você não seja bom, nem que ela seja boa demais, apenas que não casou oferta e demanda. Se com os parceiros de bola você não se afina, não consegue entrosamento (e não tem nada a ver com ser um perna de pau, apenas de curtir a suadeira), deve ser porque você não fala a mesma língua que eles. Vai que eles realmente competem entre si, quando tudo o que você quer é dar umas corridas e, quem sabe, marcar um gol, sem se ligar no resultado?


E assim vamos. Dificuldades no prédio? Sentir-se um estrangeiro na cidade? Deslocado na igreja ou templo religioso? Não é ali o seu lugar, tem que ir procurar. E quero dizer sempre que não quer dizer que você seja sempre o errado, mas que devemos procurar sempre o nosso lugar.

É claro que, em alguns lugares, nos vem o ímpeto de mudar tudo. Só que a experiência diz que só conseguimos mudar as coisas quando encontramos ambiente fértil à mudança. Ou seja, mesmo no lugar errado estamos no lugar certo, pois ali temos chance de mudar algo.


Há sempre um lugar certo para nós. Difícil é encontrá-lo. Continuemos, pois.

9.1.08

Defecando

Deve haver um número ilimitado de cagadas que um ser humano pode cometer ao longo de uma vida (claro, vamos nos limitar a uma encarnação pois se entrarmos nos méritos das cagadas que podem ser feitas nas múltiplas encarnações, faltará latrina). Ainda esta manhã, cometi mais uma. Não chequei o endereço da reunião de meus dois chefes em outra cidade. Assim, logo cedo, enquanto me preparava para dar uma bela cagada (esta, literal), toca o telefone com minha chefe me dizendo que eu havia feito uma cagada (esta, metafórica).
Putz, que merda!! Basta uma nova mancada para nos lembrarmos de tantas outras que cometemos ao longo da vida. Me lembro sempre de quando errei o dia de um exame de Língua Inglesa que vinha da Inglaterra, ou seja, inadiável e sem jeitinho para consertar. Tive que praticamente me ajoelhar na frente da gringa que cuidava do exame para me deixar fazer a prova (desde que eu não contasse para ninguém o que tinha acontecido). Foi mal, muito mal.
Os porretes que tomei e que me fizeram fazer várias cagadas também estão marcados na memória, ainda que com grandes borrões que me impedem de sentir ainda mais vexame retroativo do que já sinto ao me lembrar (parcialmente) deles. Vômitos em lugares impróprios, dormir abraçado com uma privada, entortar o eixo do carro de meus pais (detalhe: que fora pego por mim sem consentimento deles), chegar bêbado ao trabalho (ainda que eu estivesse demissionário, mas mesmo assim), enfim, a bebida já me fez fazer várias cagadas.
No trabalho, sempre há espaço para novas cagadas. Esta foi mais uma delas. Mas tudo bem. Talvez o único sinal de nosso aprendizado é que a gente vai cometendo novas cagadas com o passar do tempo, tentando não repetir as antigas. Sempre uma nova merda para cada ocasião. Pois já acho que é impossível parar de cometer cagadas. E já que é impossível, espero pelo menos aprender a me limpar.

8.1.08

Old Friends

Old friends,
Old friends
Sat on their park bench
Like bookends.
A newspaper blown though the grass
Falls on the round toes
Of the high shoes
Of the old friends.

Old friends,
Winter companions,
The old men
Lost in their overcoats,
Waiting for the sunset.
The sounds of the city,
Sifting through trees,
Settle like dust
On the shoulders
Of the old friends.

Can you imagine us
Years from today,
Sharing a park bench quietly?
How terribly strange
To be seventy.
Old friends,
Memory brushes the same years
Silently sharing the same fears

Old Friends
, de Paul Simon

É isto, meus amigos. Podemos não nos encontrar muito, mas tenham certeza que, sem vocês, este mundo seria praticamente intolerável.

Obrigado por serem!

4.1.08

O tempo que não volta

Em dias de chuva fecho os olhos e me lembro de quando dei a volta ao redor da Irlanda de mochila. Tá, não foi tão excitante como Tony Hawks mas foi, à minha maneira, muito bacana.

Claro, a primeira relação que se pode fazer é de chuva com Irlanda. Afinal, chove pelo menos 300 dias por ano lá, o que ajuda e muito a deixar o país com os infinitos tons de verde que eles têm. Mas me lembro da chuva de quando fiz a caminhada até um lugar chamado Giants Causeway no norte da Irlanda.

O dia estava meio estranho, não pendia nem para a chuva nem para o sol. Assim, de mochila nas costas, desci do ônibus em Carrick-a-Rede e comecei a caminhada pela beira do mar até Giants Causeway, 15 km distante. O tempo ameaçou fechar, e coloquei minha capa de chuva. Continuei andando. Daí o tempo abriu, com sol e tudo. Tirei a capa e continuei andando.

Mas não era um tempo estável. Logo se via no horizonte o tempo fechando e a nuvem negra, carregada de chuva, chegando. E era muita chuva, tanta que chegava a formar uma parede de água que parecia engolir o mundo. Vi a chuva abraçar um barco e ele desaparecer de minha vista. Foi o tempo de por a capa de chuva e continuar andando debaixo da tormenta. Dali a pouco a chuva parou, o sol voltou e tirei a capa de chuva de novo. Este chove não molha se repetiu pelo menos três vezes até o ponto final da jornada, feito com um pôr-do-sol em céu claro, sem nuvens.

Grandes tempos de mochileiro. Não voltarão mais, nunca mais, pelo menos do jeito que foram vividos. Agora não tenho apenas uma mochila, tenho mais três maletinhas adoráveis que pretendo levar comigo sempre que possível. Mesmo assim, às vezes dá uma saudade do que na podemos mais ter. Pelo menos são boas saudades...

Tudo devagar

O começo do ano deveria ser em meio período. Afinal, mesmo que as pessoas queiram trabalhar, metade das pessoas com quem elas devem trabalhar não estão lá. Estão em férias, estão na praia, na montanha, no exterior, em qualquer outro lugar, menos no escritório. Aproveita-se que as escolas estão paradas para viajar ou, quando não há dinheiro, para ficar em casa.

Infelizmente, há um pedaço do mundo que esqueceu o que é parar uns momentos. O tal do capital obriga que quase todos os trabalhadores do mundo não parem nunca. Afinal, o mercado exige lucros, os acionistas exigem resultados, alguém (que não se sabe direito quem é) está ali cobrando, desde o primeiro minuto do segundo dia do ano (pelo menos um dia eles são obrigados a conceder) que haja geração de resultados, lucros gordos e fartos para serem distribuídos.

Nada contra o lucro. Foi a ausência dele que fez o comunismo ruir. É a presença dele que faz o mundo avançar. Mas a dose poderia ser um pouco menor, a pressa menor, a ganância menor, para que tivéssemos mais semanas como esta primeira do ano, em que fazemos pouco não porque queremos, mas porque não podemos fazer mais.

2.1.08

Reflexões

Assino uma newsletter do cartunista Doug Savage, um cartunista que desenha uma tira por dia em um post-it, chamado Savage Chikens. No dia 31 ele desenhou este abaixo, sensacional, por resumir o espírito do Ano Novo.

Na prática, é isso aí, não muda nada. Temos sempre a esperança de que algo mudará, por mágica. Ou melhor, que tudo mudará. Esquecemos sempre que somos nós que provocamos a mudança e que, se não fizermos nada, nada acontecerá.

Exatamente o que mudará, eu não sei. Pelo menos fiz a barba para começar o ano diferente, mudado. E também para ter a sensação concreta que pelos crescem na minha cabeça (não na parte de cima, infelizmente, mas já é algo em que acreditar).