Pesquisa do Palavrório

9.3.09

Receita de um ser humano

Receita Para Se Fazer Um Herói

Ira!

Toma-se um homem
Feito de nada como nós
Em tamanho natural

Toma-se um homem
Feito de nada como nós
Em tamanho natural

Embebece-lhe a carne
De um jeito irracional
Como a fome, como o ódio

Embebece-lhe a carne
De um jeito irracional
Como a fome, como o ódio

Depois, perto do fim
Levanta-se o pendão
E toca-se o clarim
E toca-se o clarim

Serve-se morto
Serve-se morto
morto, morto

Serve-se morto
Serve-se morto
Não faz tanto tempo assim, mas ele nem de perto se parecia com o mendigo maltrapilho que vejo hoje. Há alguns anos, ele trabalhava como camelô na esquinas das marechais, centro de Curitiba. Eu o via todo dia, pois trabalhava na banca de revistas de meu pai. E admirava a quantidade de bugigangas estranhas que apareciam à venda: descascadores mágicos de legumes e verduras, antenas à prova de qualquer distância, réguas para crianças, enfim, sempre tinha algo novo.
 
De todos, o melhor era o plaquê americano. "Não é ouro, nem prata, nem bronze, é o plaquê americano!", eles gritavam, seis camelôs que se revezavam no ponto. A demonstração da qualidade do plaquê era muito convincente. Em um copo com ácido muriático, eles jogavam um talher normal, uma ficha telefônica (sempre compradas na minha banca, e só valiam as "pratinhas", fichas novas, recém prensadas) e uma das jóias que vendiam. A ficha e o talher derretiam-se, mas o colar ou pulseira de plaquê aguentava. E dá-lhe vender. Um dia, curioso, meu colega de trabalho perguntou o que era, e eles confessaram que era cobre muito, mas muito polido, para ficar com um dourado bonito.
 
Ele era um dos seis. Ninguém tinha muita cara de homem sério, davam sempre a impressão que, tão logo conseguissem algum, se enfurnariam em alguma zona à procura de mulheres e bebida. Independente do que fizessem, no dia seguinte, ao redor das 10h, lá estavam eles com seu plaquê americano.
 
Não durou muito a aventura do plaquê, um ano no máximo, e todos sumiram pela cidade. Mas um deles vive no centro atualmente. Quer dizer, viver é exagero. Um deles se arrasta pelo centro de Curitiba como um espectro a nos assombrar. Regularmente eu o encontro pelas esquinas. Ele está em farrapos. Na perna direita, uma bandagem feita há sabe-se lá quanto tempo, para mal consertar algo que quebrou a muito tempo também. Pendurada no ombro esquerdo está uma mala com seus últimos pertences, provavelmente restos de alguma coisa que não sei dizer. O olhar está perdido, nublado em meio ao álcool e ao loló, últimos entorpecentes que ele usa para esquecer sua vida.
 
Quando o encontro, ele está se arrastando para algum lugar. Eventualmente, vejo em sua mão cinco ou seis caixinhas de banha de peixe-boi, um dos muitos remédios milagrosos que existem nas mãos dos camelôs da cidade. Não creio que ele consiga vendê-los, mas lá estão os cremes em sua mão. Hoje, porém, ele estava ao lado da Catedral da cidade, sentado na soleira da porta de uma loja, uma garrafa de alguma coisa em sua boca, sem forças para se levantar. Um colega de infortúnio estava ao lado, tão nublado quanto ele, enchendo a sua garrafa com o líquido enebriante. São duas vidas que se arrastam, lentamente, para o seu fim, um fim trágico, um fim solitário, um fim em que ninguém lhe estendeu a mão ou, se isso aconteceu, ele recusou (também pode acontecer).
 
Como ele, são muitos os resistentes, os humanos resilientes a qualquer provação. Sempre me pergunto o porquê eles resistem, mesmo sabendo a resposta. Eles abdicaram de suas vidas para que nós possamos fazer algo, para que nós melhoremos. Não tem nada a ver com eles, tem a ver conosco, somos nós que temos que mudar esse mundo. Eles estão aí para nos lembrar, a cada vez que os encontramos, que poderíamos estar no lugar deles (e provavelmente estivemos, em algum momento do passado). E que deveríamos fazer algo para mudar isso. Mas ainda não fazemos...
 
É impossível não se lembrar dos tempos em que havia mais vida nele. É impossível não ficar triste com o seu destino. Mas é mais difícil ainda viver com a certeza que, se eu pudesse fazer alguma coisa por ele, eu não teria coragem de fazê-lo...